segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Glicose



É  de tal ingenuidade  a vontade de escrever do homem, e a minha também, mostrando-se despido e frágil para qualquer um que tenha olhos. Derramando  sobre o leitor uma podridão dos seus segredos pungentes,  fazendo pose, divulgando suas formas encurvas de ser humano, que se ilude com o próprio veneno criado. Que é escravizado, açoitado, assombrado por sua própria vontade de comer letras.

Comecei a escrever tão depressa que talvez meus pensamentos não consigam acompanhar minhas cartas. Minha caligrafia está feia quase ilegível, eu estou defronte a uma vela que ilumina o papel deixando-o de uma cor amarelada, estou vazia de uma forma como se tivesse provocado todos os órgãos do meu corpo, não sei como, estou viva. Viva?Talvez só esteja dormente, estou dormente, todo meu corpo, junto com minha alma. A vela está derretendo como se estivesse chorando, as lágrimas dela queimam, queimam por determinados segundos, depois solidificam na pele e gruda, é uma dor confortável  que dura pouco tempo, eu poderia passar minha vida pingando lágrimas de vela sobre  meu corpo. Está tudo escuro e eu peço baixo para poder me camuflar no bruno dessa noite, agora meu ser submete-se a uma presença estranha. Talvez ele não me veja no escuro, e vá embora levando suas dores que não são poucas e ele insiste em  mostrar, em cavar isso em minhas córneas, como uma aplicação de anestesia. Eu fico zonza e ele pode deleitar-se do meu sangue, sendo único alimento que o satisfaz, e de tantas vezes ao dia o deixei saciar, que acabei ficando anêmica.  Meu sangue agora é tão escasso que em sua próxima refeição me levará ao túmulo.
    Eu que por muitas vezes pertenci à hecatombe, e suicidei-me, hoje sou covarde e venero minha covardia como um gótico veneraria o sepulcro. Tenho granitos espalhados por toda minha alcova e não posso mexer-me muito, mumificação e os esparadrapos talvez cubra minhas feridas abertas, que não conhecem o termo “cicatrizar”. Leio pequenos versículos dos meus pensamentos, pois ao contrário de outros,  meus pensamentos não são feitos de imagens e sim de letras, elas voejam e embaralham-se e eu fico decifrando, não como um caça palavra, porque é  à palavra que me caça. Vejo às letras e nelas aparecem  hematomas, não entendo, franzo minhas sobrancelhas, mas continuo sem entender. Talvez esteja sonhando, belisco-me, não sinto, agora parece mais confuso, estou dormindo?Acorde, acorde, nada, passo as unhas fortemente pela minha epiderme, continuo sem sentir, lembro-me que estou dormente, minha alma e meu corpo que é minha carne, então comecei a contorcer meu esqueleto tentando fazer com que um osso quebre, não sinto, não sinto, quem foi o assassino?Não, não eu estou viva. E vejo, é hexágono, hexágono de 32 lados. Acordei.  Agora pareço realmente sonhando, estou em um bloco de carnaval e às pessoas gritam e jogam confetes, algumas tropicam ,jogam seus ombros contra os meus. O som ecoa por toda parte, ecoa por todos os corpos, e todos cantam uma música diferente. Eu tenho a leve sensação de hibernar, não sei como, mas é essa a sensação que estou sentindo, uma era glacial e os sorrisos começam a congelar-se, à mulata que requebrava os quadris, cessa em uma posição de estátua grega, e o homem do pandeiro ao seu lado. E tudo se torna hirto, uma desordem imóvel. E quando alguém vem me tocar, eu acordo e  grito. Acho que acordei todo mundo, verifico e vejo que estão todos dormindo, talvez tenha gritado no sonho e acordei com o barulho do próprio. Nada que esteja sendo lido e escrito nesse momento vai  ter sentido, pois é difícil saber se ainda estou no pesadelo, não sei se o que estou escrevendo vai virar concreto, ou amanhã vou procurar esse papel e descobrir minhas letras fantasiosas, que tudo não passou de um sonho. É uma sensação de está  abortando seu próprio corpo. De que nada te pertencesse, ou de que tudo passa a te pertencer, você fica lubrificado e começa a se debater em uma sala branca.
E meu devaneio é ser. Então, quero por essa noite tomar posse do meu cordão umbilical, quero à  graça de ser um embrião, de ser carregada na barriga de alguém. De poder chutar quando tenho vontade, e receber um carinho por isso, e que a pessoa sorria porque é um sinal de vida. Quero esperar o alimento chegar depois de mastigado para que eu não engasgue. Espero alguém que me ame sem conhecer meu rosto, que se sinta feliz quando eu a fizer enjoar e vomitar 3 vezes ao dia, e que não reclame disso mais uma vez, e  se sinta feliz. Quero ser esperado pelo leite que me alimentará durante três anos e que eu possa sentir-me íntima dos seus seios, até que comece andar sozinha. E quando eu  estiver já sendo um incomodo que aconteça o parto, mas que com isso ela não me tire da sua vida, mas só exista à separação da barriga.

3 comentários:

  1. Belissimo texto! um pouco extensso, mas muito bonita a tua forma de contar uma história, um conto, não sei qual dos dois é o certo.
    Fora o tamanho é excelente!

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  2. Curti o texto,
    mas linguagem "cultural" demais pra mim...
    de qualquer forma...
    Bacana =D

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  3. o.o
    Realmente esse me surpriendeu.
    Gostei de mais, de mais mesmo.O jeito que você conta é incrivel [ao meu ver], não é como se simplesmente você escrevesse, você consegue dar vida as palavras, fica tudo tão "palpavel".
    Não so nenhum critico nem nada, é só a minha opinião.
    Ficou ótimo, menina.Parabéns.


    Qlqr

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