sábado, 31 de maio de 2014

Quando tocou “the grateful dead”



Já contava quatro semanas. O calor infernal dessa cidade. O trânsito. O fleche que não fechava. O fleche que não abria. O sapato que incomodava. As couraças que se sobressaiam nas costas, numa espécie de segundo corpo querendo se extraviar da alma. Corria p’rum lado. Corria pr’outro. De sete até as sete. Comia na rua. Comia a rua. Comia a poeira, o asfalto, as pedras. Sentia dores de barriga. Acordava todas as manhãs com a sensação que nada seria aproveitado. De que ninguém estaria lá. De que nada estaria. Pois eu não estaria. Estava adormecendo em um abismo entre caveiras e lembranças. Em dias normais tomava uma para descer melhor à vida. Em dias fáticos, aumentava a dose  para desvanecer e não sentir nada. Sempre abria a mesma porta. Parava no mesmo canto. Entrava no mesmo bar. Ria das mesmas piadas. Construía o mesmo muro. Pintava o mesmo quadro. Um ser dotado ao aprendizado por base de chicoteadas. Quantas vezes escrevi esse mesmo texto em vida? Lia-o noutro dia, e o apagava no desespero de apagar cicatrizes. Descia às escadas como quem subia. Não existe nada de metafísico no prato de feijão de segunda a sexta. O sol dourado que nasce para todos é o mesmo que queima a pele de alguns. Estava carregando o cadáver de mim. E o nada já não fazia sentido. Então  acordei no sol de sexta-feira, depois de ter dormido por 14 horas. Algo queimava em meu peito. Alguma voz doce me chamava. Ouvia uma melodia suave e sentia o ritmo balançando minha rede. A voz que me chamava saía de minha boca. Minhas primeiras palavras “But if you fall, you fall alone”, algo como, se você cair, cai sozinho.  E eu já estava sobre um barco em ondas calmas. Sentia uma brisa branda atravessar meus cabelos. Estava, enfim, voltando para minha natureza. Eu o horizonte, brisa e mar, afagavam-se todos os elementos e algo me dizia que os deuses me apontava uma direção. Punha minha mão no rio e sentia doces águas claras entre meus dedos. Estou indo te visitar. Mas o caminho será feito pelos ventos. Pelas ondas. Talvez passe em outros lugares antes de chegar onde você mora. Sem remo. Talvez você sinta o que digo quando tocar “the grateful dead”
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