Quando abri aquele portão preto senti logo o cheiro de carne no fogo. Mas não estava com fome. Falavam sobre contas quando atravessei de supetão da cozinha ao meu quarto, o tempo dela me dizer “Quem comer por último guarda as louças”, sempre ironizava isso, pois sabia quem, consecutivamente, ficava por último. Respondi que “sim” com a cabeça. Passei mais tempo no banho que o costume tentando tirar todas aquelas caspas do meu cabelo. Voltei à cozinha, bebi um pouco de água, agora falavam de como eles puniriam os criminosos no caso fosse concedido uma chance de tal. Fingia que não os ouvia. Voltei ao quarto, apanhei algumas folhas amassadas e jogadas ao chão. Eram anotações inúteis. Sempre tenho anotações jogadas por aí. Sempre as apanho e leio ou a angustia de ter jogado algo importante fora me toma, embora nunca tenha guardado nenhum desses papeis. Tirei o micro system e começou a tocar strawberry fields forever, 23h45min, passei o olhar em uma fotografia minha e de uma ex-namorada que ainda estava numa mesinha que fica ao lado da cama. Nunca entendi como era a melhor forma de encarar o passado. Os homens omitem seus sentimentos pela mulher amada. A mulher amada, por sua vez, ignora-os quando deliberadamente é falado demasiado sobre esse amor. Passo os meus olhos sobre o sorriso jocoso dela. Sempre teve uma espécie de felicidade clandestina nos seus olhos, mesmo quando triste, mesmo quando jogava sobre meu corpo as maldições do mundo. E se algo de maligno lhe acontecesse encarava isso de uma forma serena, dizia-me que para acontecer tantas desventuras era preciso que alguém se tome de felicidade. Sua ruína era a fortuna de alguém. Para o mundo isso é o equilíbrio. Nesses dias ao pensar nela sinto seu cheiro indo e vindo, sinto o coração aquecido por uma espécie de dor e nostalgia. Como é ver seu passado escrito sobre um rosto tão conhecido? Suas lembranças agora possuem cheiro de alguém. As memórias se tornam físicas ao se apaixonar. Mãos que me recordam sentimento de compaixão, tal qual dia ela estendeu suas mãos miúdas sobre meu rosto que estava suando. Então, debruço-me, penso em Tereza. Enlaço-me, acoito-me, corroo-me e dentro do que pulsa expulso. Penso em você mais do que quando estava. Quando sabia que horas voltaria. Com quem estava rindo. Mas engana-se! Não, não quero vê-la. Não quero teus olhos em mim, do que éramos restam lembranças, não sou mais o encantador, viril, fantasiado. Tenho medo de te encontrar e que tu estejas mal, ou pior, que estejas muito bem. Tenho medo de te encontrar e que tu me vejas, ou que não me veja ou fingindo não me ver apanhe o ônibus. Tenho medo de te encontrar e que tu saias ou que tu queiras ficar. Tenho medo de te encontrar e me desencantar. Que tu estejas mais sonolenta, monossilábica a ponto de me parecer que pioras a cada dia. Tenho medo de encontrar no teu encontro com alguém. Tenho medo de te encontrar e que tu queiras conversar. Fala sobre Nietzsche e das coisas que aprendeu até então. Então eu não respondo, presto atenção nos teus lábios e nas tuas pausas. Tu me olhas e, gaguejando, fala sobre outra cousa que já não sei, então tu percebes, fala-me do seu atraso, e mostrando-se cordial, beija-me o rosto e foge. Foge? E nesses nossos encontros imaginários escapo da vontade do real. Então nos olhamos fixamente, procurava no meu imaginário o som do teu riso. E tu me olhavas disfarçadamente, mas teu disfarçar já denunciava. Começara andar. E eu começara a te seguir. E sobre as ruas penumbrantes só enxergávamos becos. O som que emanava do teu salto era de um ritmo frenético. TUM-TUM-TUM-TUM... Virava-se outra esquina. Quase pisa na poça. TAM-TAM-TAM. Existem almas perdidas nas noites procurando por um corpo frio. Virava-se outra esquina. Suas pernas parecem querer chegar mais rápido que seu corpo. Cortei caminho. Ela entrou em outro beco. Seus olhos explodiam e seu corpo sacudia como uma rapina virgem. Finquei-a. Senti palpável o som de suas carnes rasgando. Acima do umbigo. Seu sangue quente. Sua alma começara a exilar por seus poros. O inferno é aquele beco. Se tu soltas minhas mãos mastigarei teus dedos e que no inferno não te faças alianças com ninguém.
Já contava quatro semanas. O calor infernal dessa cidade. O trânsito. O fleche que não fechava. O fleche que não abria. O sapato que incomodava. As couraças que se sobressaiam nas costas, numa espécie de segundo corpo querendo se extraviar da alma. Corria p’rum lado. Corria pr’outro. De sete até as sete. Comia na rua. Comia a rua. Comia a poeira, o asfalto, as pedras. Sentia dores de barriga. Acordava todas as manhãs com a sensação que nada seria aproveitado. De que ninguém estaria lá. De que nada estaria. Pois eu não estaria. Estava adormecendo em um abismo entre caveiras e lembranças. Em dias normais tomava uma para descer melhor à vida. Em dias fáticos, aumentava a dose para desvanecer e não sentir nada. Sempre abria a mesma porta. Parava no mesmo canto. Entrava no mesmo bar. Ria das mesmas piadas. Construía o mesmo muro. Pintava o mesmo quadro. Um ser dotado ao aprendizado por base de chicoteadas. Quantas vezes escrevi esse mesmo texto em vida? Lia-o noutro dia, e o apagava no desespero de apagar cicatrizes. Descia às escadas como quem subia. Não existe nada de metafísico no prato de feijão de segunda a sexta. O sol dourado que nasce para todos é o mesmo que queima a pele de alguns. Estava carregando o cadáver de mim. E o nada já não fazia sentido. Então acordei no sol de sexta-feira, depois de ter dormido por 14 horas. Algo queimava em meu peito. Alguma voz doce me chamava. Ouvia uma melodia suave e sentia o ritmo balançando minha rede. A voz que me chamava saía de minha boca. Minhas primeiras palavras “But if you fall, you fall alone”, algo como, se você cair, cai sozinho. E eu já estava sobre um barco em ondas calmas. Sentia uma brisa branda atravessar meus cabelos. Estava, enfim, voltando para minha natureza. Eu o horizonte, brisa e mar, afagavam-se todos os elementos e algo me dizia que os deuses me apontava uma direção. Punha minha mão no rio e sentia doces águas claras entre meus dedos. Estou indo te visitar. Mas o caminho será feito pelos ventos. Pelas ondas. Talvez passe em outros lugares antes de chegar onde você mora. Sem remo. Talvez você sinta o que digo quando tocar “the grateful dead”
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